Os temporais observados durante o verão causaram sucessivas quedas de árvores e fornecimento de energia elétrica em São Paulo, a maior cidade do país, e o problema deve se tornar cada vez mais decorrente em meio às mudanças climáticas que intensificam as chuvas. Isso contribuiu para expor a fragilidade na relação entre os governos e a Enel, empresa responsável pela distribuição de energia na região metropolitana da capital paulista desde 2018 e quem vem sofrendo pressão da prefeitura e do governo do Estado de São Paulo devido à qualidade do serviço.
Segundo especialistas ouvidos pelo Valor, a confusão entre as versões das autoridades e da empresa ocorre principalmente por causa de um contrato “envelhecido” que não detalha bem o nível de eficiência que a concessionária precisa atingir e que tampouco contempla a frequência cada vez mais comum de eventos climáticos extremos. Esse é um problema que transcende o contrato com a Enel. A maioria das concessões de serviços privados no país obedece as regras da década de 1990, que já não servem mais para os dias de hoje.
Conforme explica o professor de ciência ambiental do Instituto de Energia e Ambiente (IEE) da Universidade de São Paulo (USP) Pedro Luiz Côrtes, embora a Enel tenha assumido a operação em 2018, o contrato da privatização da Eletropaulo, a antiga estatal de eletricidade, foi feito em 1998 pelo governo federal do então presidente Fernando Henrique Cardoso, época em que os técnicos não previam os efeitos reais das mudanças climáticas.
Mesmo que o contrato com a Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) não seja tão específico sobre como a empresa precisa agir para garantir o serviço após eventos extremos, Côrtes diz que a agência reguladora pode e deve exigir melhor preparação e mais eficiência da companhia nos momentos de emergência.
“É de fundamental importância que a Aneel passe a contemplar nas suas normas e diretrizes questões relacionadas às mudanças climáticas”, comenta o professor. “E adiciono outro aspecto. Mesmo que o contrato seja federal, ficou claro que a Enel e também a prefeitura não levaram em consideração o panorama das mudanças climáticas, pois há meses já sabíamos que com o fenômeno El Niño teremos chuvas mais intensas por um período”, acrescenta.
Côrtes também diz que, embora o contrato assinado em 1998 termine apenas em 2028, podem ser feitos ajustes para incluir necessidades novas.
Autor do livro “A privatização certa – Por que as empresas privadas em iniciativas públicas precisam de governos capazes”, o professor do Insper Sergio Lazzarini afirma que uma concessão de serviço público essencial para a população depende justamente de um bom contrato que permita ajustes e negociações ao longo do tempo.
“É normal ter uma condição contratual na hora da venda e depois de um tempo ter outra. Tem que haver espaço para ir negociando e ajustando. Fazendo isso com cuidado. Por isso, precisa ter gente muito boa e técnica dos dois lados, além de agências reguladoras muito robustas, com capacidades orçamentárias e técnicas que ainda não há no Brasil”, indica.
De acordo com Felipe Estefam, sócio do escritório Cascione Advogados e especialista em direito público e regulatório, a “ausência de clareza” no contrato da Enel São Paulo é exatamente o que contratos mais modernos de concessões de serviços públicos já estão tentando evitar.
“No passado, esses contratos tinham uma modelagem mais aberta, mais frouxa. A definição de prazos, direitos, e responsabilidades eram feitos com cláusulas mais vagas e, com o tempo, acaba gerando inseguranças jurídicas tanto para o concessionário quanto para o poder público. Os dois lados acabam perdendo”, diz. “Mas de uns dez anos pra cá, os contratos passaram por um conceito de reconfiguração no sentido de serem mais bem detalhados. Hoje já existe uma sofisticação maior para deixá-los mais seguros para todo o período de vigência”.
Estefam explica que é possível redigir salvaguardas que evitem que um contrato de concessão fique burocrático demais e com cláusulas exageradas. “É possível utilizar como parâmetro modelagens que fazem a distinção entre eventos de força maior que podem ou não ser seguráveis. Nessas modelagens, o privado assume os riscos seguráveis de força maior e o poder público assume os eventos de força maior que não possam ser objeto de cobertura de seguros oferecidos no Brasil na época de sua ocorrência.”
A Aneel admite que nem todas as questões relativas à qualidade do serviço que precisa ser prestado pela Enel estão definidas no contrato de quase 30 anos atrás e reconhece que, de fato, há espaço para o trabalho de regulação e fiscalização avançar. Em nota enviada ao Valor, a agência também informa que, nos últimos cinco anos, aplicou multas a Enel São Paulo que totalizam R$ 157 milhões devido a falhas na prestação do serviço.
Em relação a adaptações que façam frente às mudanças climáticas, a Aneel disse que desde 2015 vem incorporando minutas mais rigorosas nos contratos de concessão de distribuição [de energia elétrica] do Brasil e que já fez sugestões ao Ministério de Minas e Energia que devem figurar na renovação da concessão em São Paulo, em 2028.
A Enel, por sua vez, afirma que “desde que adquiriu a Eletropaulo, tem realizado uma média anual de investimentos da ordem de mais de R$ 1,3 bilhão por ano, contra cerca de R$ 800 milhões por ano investidos anteriormente”. A companhia ainda lembra que o vendaval de novembro do ano passado, por exemplo, quando áreas do centro e da zona sul ficaram sem eletricidade por mais de uma semana, foi o mais intenso registrado nos últimos anos no Estado”.
Mas a justificativa de que os eventos climáticos estão surpreendendo é recebida com preocupação pelo professor Côrtes. “Podem argumentar que foi um evento excepcional e foi mesmo. Mas é bom que prefeituras, Estados, companhias de energia elétrica e de outros serviços públicos se acostumem com esse cenário porque ele tende a deixar de ser excepcional e se tornar cada vez mais frequente”, alerta.
As consequências das fortes chuvas em São Paulo neste verão inclusive aumentaram a atenção ao processo de privatização da Sabesp, a companhia de saneamento básico do Estado. Para rebater as preocupações de que uma Sabesp com controle privado possa permitir perda de qualidade na prestação dos serviços, o governador Tarcísio de Freitas argumenta que a concessão será diferente e que “não será um contrato frouxo”.
O governo paulista, por meio da Secretaria de Comunicação, reforçou que “o modelo de desestatização adotado pela Sabesp vai ampliar e antecipar investimentos para universalizar o saneamento, e a regulação construída tem diferenças fundamentais em relação a que rege a distribuição de energia elétrica”. A nota diz ainda que um dos pontos fundamentais é o enfrentamento às mudanças climáticas, que “está previsto no plano de investimentos, com a necessidade de definição de ações de contingência para eventos climáticos extremos”.
No entanto, Côrtes avalia que o projeto de lei da desestatização da Sabesp também é vago em relação ao tema das mudanças climáticas. Ele teme que, caso a concessão avance nos termos estabelecidos até o momento, problemas podem surgir ao longo do tempo.
“Fiz uma análise das emendas e substitutivas apresentadas pelas bancadas na Alesp e apenas uma delas citava de raspão a questão das mudanças climáticas. Isso me causa preocupação porque o contexto climático tem mudado ao longo dos últimos 25 anos e coloca em perspectiva a necessidade de aprimoramento do modelo de abastecimento [de água] que temos aqui na região metropolitana [de São Paulo]”.
O professor da USP destaca, por exemplo, que o Estado “muito provavelmente” passará nos próximos anos por novos períodos de estiagem prolongada, o que pode exigir uma série de investimentos que ainda não são vistos como prioridade hoje.
Segundo Lazzarini, embora o discurso sobre privatização no Brasil, em geral, defenda a ideia de que a iniciativa privada é mais eficiente do que o poder público, os exemplos ao redor do mundo mostram que, na verdade, quanto mais competente for um governo, mais chances de que uma privatização ou concessão por Parceria Público-Privada (PPP) não gere efeitos negativos para a sociedade.
“Privatização não é uma forma de se livrar de governos ruins. É preciso que o governo seja bom para fazer uma privatização bem feita”, diz o professor do Insper. “Em casos de serviços críticos que têm impacto na população, como monopólios naturais a exemplo de distribuição de água, é preciso fazer tudo com cuidado, prevendo a devida regulação. Tem que ter um bom aparato estatal. Um governo que defina boas políticas, não faça intervenções bruscas e que passe confiança para as empresas investirem, mas também estabelecendo parâmetros de qualidade e entregas específicas”.
Conforme conclui Lazzarini, “imprevistos” como eventos climáticos extremos, que já nem sempre são tão inesperados, podem surgir sem causar tantos danos desde que o processo de preparação, implementação e acompanhamento de uma concessão seja feito por técnicos capazes. “É preciso ter regras claras”.