O cinema LGBTQIA+ vive um constante dilema. Por um lado, há uma pressão para que filmes não apresentem só histórias trágicas, envolvendo situações violentas com as quais, historicamente, a comunidade queer tem sido associada. Uma busca por evitar clichês e propor que a existência LGBTQIA+ pode ser igual à de qualquer outra pessoa.
Por outro lado, as representações excessivamente positivas, tratando como um mar de rosas a vida e a experiência social de pessoas diuturnamente oprimidas, por vezes também podem soar falsas e escapistas. Apesar de tantos avanços, ser queer ainda significa afrontar traumas, medos e tabus.
Em grande parte de sua duração, “Todos Nós Desconhecidos” se equilibra bem entre essas duas vertentes. É sobre um homossexual em crise, que optou por uma vida 100% solitária –sofreu uma série de desilusões que provavelmente o mundo gay lhe trouxe. Mas a ele é permitida uma chance de amar, de forma inusitada e repentina –além de bastante poética.
Andrew Scott tem aqui sua primeira grande chance no cinema, na pele de Adam, um roteirista gay já quase cinquentão, que perdeu seus pais ainda adolescente, e nunca superou isso muito bem. Ele busca exorcizar esse trauma por meio de um roteiro em que revisita sua história.
Ele mora sozinho em um prédio impessoal em um subúrbio de Londres, onde mal sabe da existência de vizinhos. A exceção é Harry, vivido por Paul Mescal, um rapaz mais novo com um gosto pronunciado por bebidas alcoólicas, que um dia bate em sua porta.
“Não precisa fazer nada, se não sou o seu estilo”, Harry lhe diz. Quer satisfazer seus desejos carnais, obviamente, mas sobretudo aplacar sua solidão com Adam.
O diretor Andrew Haigh tem grande tato para lidar com histórias intimistas. Em “45 Anos”, de 2015, fez isso com notável habilidade ao narrar a crise no casamento entre um homem e uma mulher, após décadas de convivência.
Em seu novo filme, ele conduz com muita sensibilidade tanto o reencontro imaginado entre Adam e sua família, quanto a relação entre o roteirista e seu vizinho. Mas a verdade é que uma história sempre rouba um pouco do protagonismo da outra. E surge a dúvida: o que realmente tornou Adam tão infeliz e quase um eremita? Teria sido a morte precoce dos seus pais, a quem sequer pôde revelar quem ele era de fato? Ou a sua condição de homossexual desiludido, em grande parte por nunca ter conseguido se abrir com seus próprios pais?
É claro que são dois dramas entrelaçados e que se retroalimentam, mas é um pouco difícil entender com exatidão qual é o tema fundamental do filme. São duas questões importantes que, apesar de andarem juntas, muitas vezes concorrem entre si e obscurecem a real intenção de Haigh e da obra como um todo.
Mas, vistas separadamente, ambas são tratadas de forma bastante satisfatória. Haigh tem a ideia audaciosa de colocar Scott contracenando com dois atores bem mais jovens, Claire Foy e Jamie Bell, interpretando seus pais. Inclusive, maliciosamente, na primeira cena em que Adam encontra o progenitor, por segundos a situação parece se tratar de um flerte entre o protagonista e um rapaz que viu no supermercado.
Observar essa interação entre Scott e os trintões Foy e Bell gera estranhamento nas primeiras cenas, mas há tanta verdade na performance do trio que, de repente, começamos a enxergar ali verdadeiramente uma mãe, um pai e um filho. São momentos intensamente tocantes.
Na outra trama, a interação entre Scott e Mescal também é muito bem-sucedida. O astro de “Aftersun”, de 2022, comprova que é mesmo o ator da envergadura que se esperava dele nos filmes seguintes ao que o lançou à fama. Na primeira cena de contato de natureza sexual entre eles, em vez de um beijo libidinoso, Harry toca gentilmente o joelho de Adam. Há sensualidade no gesto, mas existe igualmente uma grande ternura.
Muitas pessoas se dizem verdadeiramente surpresas com o que seria uma “reviravolta” da trama, bem perto do fim do filme, mas a verdade é que desde o começo não é lá muito difícil imaginar o que de fato só será revelado no desfecho. A grande qualidade do filme não está aí, em absoluto. Está na delicadeza em tratar as questões que circundam Adam. “Todos Nós Desconhecidos” é um filme de uma melancolia indescritível. Mas se não tivesse o toque suave de Haigh em várias cenas, talvez fosse insuportável em sua tristeza.