Uma semana após o início do pleito que reelegeu Vladimir Putin para mais seis anos à frente do Kremlin, a Rússia promoveu um dos maiores ataques aéreos já feitos contra a Ucrânia e chamou o conflito iniciado em 2022 de guerra pela primeira vez.
O porta-voz do Kremlin, Dmitri Peskov, desenhou a nova lógica do país em um artigo na revista Argumentos e Fatos e em sua fala diária com jornalistas nesta sexta (22). Até aqui, o eufemismo oficial para a o conflito era SVO (sigla russa para operação militar especial), de uso obrigatório na imprensa pelo órgão regulador de mídia local.
“Nós estamos em um estado de guerra. Sim, ela começou como uma operação militar especial, mas assim que esse grupo [de países que apoiam Kiev] se formou, quando o Ocidente coletivo virou participante do lado da Ucrânia, isso virou uma guerra para nós”, afirmou.
Para ele, o fato de os russos ainda não controlarem totalmente os quatro territórios que anexaram ilegalmente em setembro de 2022, no sul e no leste da Ucrânia, significa que “de fato há áreas ocupadas da Rússia” pelos inimigos.
A pirueta retórica, dado que o Kremlin tomou tais áreas, vem no momento em que os ucranianos passaram a atacar com intensidade Belgorodo, região fronteiriça ao sul, fazendo Putin prometer uma zona-tampão dentro do vizinho para evitar o alcance das armas rivais.
Mas não é só discurso, embora até Putin e outras autoridades já tenham chamado a guerra de guerra em falas ao longo dos dois anos da invasão que promoveu. Ao limitar a ação a uma operação, o Kremlin minimizava para o público interno seu escopo, apesar dos enormes esforços e perdas envolvidos —analistas russos falam em cerca de 100 mil soldados mortos até aqui.
Ao assumir o conflito como uma guerra, após ter convertido parte da produção industrial e anunciado ter aumentado em 150% a produção de munições diversas em 2023, a Rússia se abre a medidas mais drásticas, como novas mobilizações de reservistas. Apenas uma, de 320 mil homens, foi feita até aqui, e altamente impopular.
De todo modo, não houve uma declaração formal de guerra, o que seria uma escalada grande por permitir a mobilização geral do país de forma oficial.
Ainda assim, Putin deixou um cartão de visita para sua mudança de discurso com o segundo maior ataque com mísseis e drones desde que a guerra começou, ao longo da madrugada desta sexta.
Segundo as Forças Armadas da Ucrânia, foram 151 armamentos de diversos tipos contra a infraestrutura energética ucraniana, deixando 1,2 milhão de pessoas sem luz. O país tem 36 milhões de habitantes nas áreas sob seu controle. Antes, o recorde havia sido de 158 mísseis e aviões-robôs, em dezembro.
Houve ao menos cinco mortes, segundo Kiev. A ação foi maciça e chamou a atenção pela variedade de armas usadas, além da dificuldade das defesas aéreas ucranianas em abatê-las.
Voltando à tática implantada na virada do ano, os russos enviaram inicialmente uma onda de 63 drones suicidas de origem iraniana Shahed-136, dos quais 55 foram abatidos, mantendo as defesas ocupadas. Depois, veio uma saraivada com 40 mísseis de cruzeiro supersônicos Kh-101/555, na qual Kiev disse ter abatido 35, além dos 2 mísseis de cruzeiros guiados Kh-59 lançados.
Os sucessos acabam aí. Passaram pelas defesas, além dos já citados, sete hipersônicos Kinjal, 22 mísseis balísticos lançados por baterias antiaéreas S-300 adaptadas, cinco mísseis de cruzeiro Kh-22 e 12 mísseis balísticos Iskander-M.
A região mais afetada foi a de Kharkiv, no norte do país, onde 700 mil ficaram sem energia. É de lá que saem boa parte dos ataques contra o sul russo, o que sugere desde uma advertência até o início da ação nesta nova frente da guerra. Também foram bombardeadas Odessa (sul), Dnipropetrovsk (sudeste) e Poltava (centro).
“Foi o maior ataque combinado contra o sistema de energia”, disse o presidente da estatal energética UkrEnergo, Volodimir Kudritski, em nota. Houve blecautes em sete regiões. Os russos atingiram oito vezes a maior hidrelétrica do país, a Dnipro, mas sua barragem não corre risco de rompimento.
O Ministério da Defesa em Moscou disse que “todos os objetivos foram alcançados” e que a ação visava retaliar as incursões promovidas por comandos rebeldes russos armados pela Ucrânia em Belgorodo e Kursk, na semana passada.
No X, o presidente Volodimir Zelenski voltou a apelar por mais defesas aéreas do Ocidente, que tem protelado por meses o envio efetivo de nova ajuda militar a Kiev —principalmente os R$ 300 bilhões que Joe Biden quer colocar à disposição do aliado, mas que foram bloqueados na Câmara dos EUA pela oposição republicana de Donald Trump, que busca desalojar o democrata da Casa Branca neste ano.
“Drones Shahed não têm indecisão, diferentemente de alguns políticos. É crítico entender os custos de atrasos de decisões proteladas. Sistemas [antiaéreos americanos] Patriot precisam proteger Kharkiv e Zaporíjia. Nossos parceiros sabem exatamente o que é preciso”, afirmou.
A crescente ansiedade em Kiev ocorre desde o fracasso da contraofensiva do ano passado e os recentes avanços russos no leste do país. Analistas e políticos advertem que as defesas ucranianas podem até ser rompidas em alguns pontos sem um reforço de munição.
A campanha assimétrica ucraniana contra o sul russo parece não ter agradado os EUA, segundo relato nesta sexta do jornal britânico Financial Times. A reportagem diz que Washington pediu que Kiev parasse de enviar drones contra refinarias russas —oito foram alvejadas na semana final da campanha eleitoral de Putin.
O motivo, claro, é o usual temor de escalada na resposta russa e eventual risco de um confronto direto com o Ocidente —guerra nuclear no limite. Além disso, há o risco da elevação do preço do petróleo. Questionado sobre a história, Peskov ironizou e disse: “Prefiro que eles [os americanos] peçam que não ataquem residências”.
Já o governo ucraniano disse que as refinarias são “alvos legítimos” por alimentarem a economia de guerra russa.