No segundo ano do governo Lula, com o Ministério dos Povos Indígenas sem poder de decisão na maior demanda dos povos – a demarcação de terras – o movimento indígena se declara frustrado. Na 1ª Reunião do Conselho Nacional de Política Indigenista (CNPI), na quinta-feira (18), o presidente Luiz Inácio Lula da Silva homologou duas terras e deixou quatro, de novo, em compasso de espera. Escolheu dar mais tempo a governadores de Santa Catarina, Alagoas e da Paraíba e preterir as esperanças dos povos originários.
O movimento cobrou o governo postando mensagens nas redes sociais. “473 dias de governo e promessas sobre demarcações de Lula continuam pendentes – Rui Costa, da Casa Civil, segue governando sobre homologações de Terras Indígenas”, publicaram oito grandes entidades indígenas. “Lula assina a homologação de 2 terras indígenas durante reunião do CNPI. Com as anunciadas hoje, faltam 4 das prometidas para os 100 primeiros dias de governo”.
Lula reconheceu o descontentamento. “Sei que vocês estão apreensivos e esperavam a demarcação de seis terras indígenas, mas, agora, só anunciamos duas”, publicou no X (ex-Twitter) na noite da quinta-feira. “E estou sendo verdadeiro com vocês. Algumas dessas terras que faltam estão ocupadas ou por fazendeiros ou por camponeses. Não podemos chegar sem dar uma alternativa a essas pessoas. Alguns governadores pediram um tempo para solucionar, de forma negociada, a desocupação desses territórios para que possamos demarcar. Para vocês terem tranquilidade e não serem surpreendidos, no futuro, com reversão no Judiciário”.
“Nas palavras do presidente, os governadores pediram um prazo. Só que, para nosso descontentamento, o que queremos é que se cumpra o texto constitucional. Ali e no rito do decreto 1755/96 (que dispõe sobre o procedimento da demarcação as terras indígenas) não se prevê consulta a governadores. Existe uma fase de contestação, e é para todos, inclusive para os Estados. Esse é o rito. Mas se passou a fase de contestação, o prazo do governador se manifestar também venceu”, segue a liderança indígena.
Dinamam Tuxá diz que, no entendimento do movimento, “há, sim, uma interferência política. É algo não previsto no decreto que, após o processo concluído, haverá consulta a governadores. Isso não está previsto nem no decreto nem no nosso texto Constitucional”.
O ministro da Justiça, Ricardo Lewandowski, levou a Lula a homologação de seis terras indígenas, mas Rui Costa teria barrado quatro. Só duas foram homologadas – a de Aldeia Velha do povo Pataxó, em Porto Seguro (BA) e Cacique Fontoura do povo Iny Karajá, em Lagoa da Confusão (TO), Luciara (MT) e São Félix do Araguaia (MT). Somadas, representam 34.070 hectares.
Aldeia Velha, no sul da Bahia, tem 1.997 hectares. Fica em região de conflito com forte interesse turístico. Estava declarada desde 2010, relata o antropólogo Tiago Moreira, pesquisador do Instituto Socioambiental (ISA). “É uma área com estudos muito anteriores”, continua. Há 1.500 indígenas vivendo ali. A Funai tem registros históricos dos pataxós na região desde o início do século XIX.
Cacique Fontoura, a outra terra homologada por Lula, tem 32 mil hectares e fica entre três municípios, no Mato Grosso e Tocantins. É área de ocupação do povo Iny Karajá. Começou a ser estudada em 2001. Está em área de muitas fazendas de gado e região de campos naturais. Fazendeiros tendem a ocupar essas áreas de pastos naturais. A terra estava demarcada fisicamente desde 2009. “O processo de espera foi de 14 anos para ocorrer homologação, uma inércia do Estado para assegurar os direitos”, diz o antropólogo.
Entre as quatro terras que não foram homologadas está a Xukuru-Kariri, em Palmeiras dos Índios, Alagoas. Trata-se de uma luta de 45 anos. Em 2013 a demarcação física foi suspensa por alegada falta de recursos da Fundação Nacional do Índio, a Funai. Os Xukuru-Kariri lutam por sete mil hectares onde vivem cerca de 2.400 pessoas. Foi delimitada em 2008 e declarada pelo MJ em 2010.
Em Santa Catarina há duas terras prontas para homologação, segundo o movimento indígena – Morro dos Cavalos, dos povos Guarani Mbya e Guarani Nhandeva, em Palhoça, e Toldo Imbu, do povo Kaingang, em Abelardo Luz.
“Morro dos Cavalos é um caso emblemático de conflitos no processo de reconhecimento”, conta o antropólogo. Tem uma sobreposição com o Parque Estadual da Serra do Tabuleiro. “O grande opositor desta terra indígena é o próprio Estado de Santa Catarina”, continua.
Quando foi delimitada, o Estado moveu uma ação contra a União e a Funai. Mais de 80% da terra indígena está dentro do parque. “Era para não ter briga nenhuma. É uma dupla proteção que o parque estaria recebendo. Sabemos que onde existem povos indígenas a proteção é muito maior do que as áreas que não têm”, segue Moreira. A terra indígena tem 2 mil hectares e a sobreposição com o parque (que tem 87.400 hectares), é de 1.600 hectares.
A Terra Indígena Toldo Imbu, também em Santa Catarina, do povo Kaingang, é uma reivindicação do começo do século XX. “São populações que foram levadas a força para outros lugares e estão há 40 anos tentando voltar para o seu território original”, diz Moreira. O processo de identificação foi iniciado pela Funai em 1986. A disputa é por 2.000 hectares hoje habitados por muitos colonos.
Outro território que ficou em compasso de espera é Potiguara de Monte-Mor, do povo Potiguara, entre os municípios de Marcação e Rio Tinto, na Paraíba. “Também é uma história que começa no século XIX”, conta o antropólogo. O estudo foi aprovado em 1997 e a terra foi declarada em 2007. Tem 7.400 hectares. “É uma das terras há mais tempo declaradas, esperando para ser homologada. Tem altíssima densidade demográfica – ali vivem quase 11 mil pessoas”, conta Moreira.
“No caso da Paraíba, por exemplo, não há nenhum tipo de disputa. Já resolveu tudo, não há impedimento legal e nem conflitos. É que precisa fazer a indenização das benfeitorias de boa-fé”, diz Dinamam Tuxá.
A União deve ressarcir eventuais benfeitorias dos não indígenas que viviam no território quando uma homologação é assinada. A União não paga a terra, mas o que se construiu ali – casas, por exemplo.
“Entendemos que as pessoas têm, sim, que ser devidamente alocadas. Não queremos que ninguém passe por situação de penúria. Mas os povos indígenas não podem ser penalizados por isso. Esperamos que o governo destine essas pessoas para lugares adequados, mas não podemos ser penalizados por isso e estamos sendo”, continua.
“Só depois do processo de homologação pelo Presidente da República é que a população indígena pode tomar posse plenamente de seu território, com a retirada da população não-indígena”, explica Moreira. “Enquanto isso não acontece, fica-se gestando um conflito”.
Gargalos no processo demarcatório
O movimento indígena reconhece que, hoje, há vários gargalos no processo demarcatório. O Ministério dos Povos Indígenas e a Funai têm pouco poder no processo. Nenhuma terra indígena foi declarada no governo Lula 3. É a declaração que valida todo o ato administrativo e a homologação é a chancela final.
Nas contas do ISA, a média de demarcação de terras indígenas nos últimos 20 anos foi de oito terras/ano. “O que constatamos é que a média de terras reconhecida no terceiro mandato do presidente Lula é que, embora esteja dentro da média dos últimos 20 anos de homologação, é muito insuficiente para sanar o passivo. Levaremos mais de três décadas para resolver o passivo se o ritmo de homologações for esse”.
Há, hoje, 251 terras indígenas em algum processo de reconhecimento segundo o ISA. Destas, 135 estão no primeiro estágio, com grupos de estudo montados para analisar onde viviam e vivem os indígenas que reivindicam a área. Do total, 46 terras têm estudos já aprovados pela Funai e estão pendentes de declaração do Ministério da Justiça.
Mas 64 terras indígenas já foram declaradas pelo Ministério da Justiça. Outras seis têm presença confirmada de povos isolados e aguardam portarias de restrição de uso.
O descontentamento dos povos indígenas com o governo Lula tem aflorado. No Programa Roda Viva de 15 de fevereiro, o líder yanomami Davi Kopenawa criticou a mensagem de Lula que o governo tem intenção de proteger a Amazônia, mas a floresta não é um santuário.
“Autoridade tem outro pensamento. Quando está junto com nós, com o povo indígena, eles falam bonitinho”, reagiu.
O cacique Raoni, por seu turno, tem pedido que o presidente Lula não siga em frente com a Ferrogrão, a linha férrea que começa no Mato Grosso e irá até o Pará para escoar a produção de soja.
A reportagem procurou a Casa Civil, mas não conseguiu retorno até o fechamento desta matéria.