[RESUMO] Em entrevista a respeito de seu livro mais recente, Judith Butler diz que ataques que sofreu no Brasil em 2017 a inspiraram a estudar o discurso conservador que equipara o gênero a uma ideologia demoníaca contra as famílias. A filósofa americana também critica parcelas da esquerda que descartam os debates sobre identidade sexual, raça e meio ambiente por considerá-los meramente identitários, pois, a seu ver, eles integram a ampla luta por igualdade, liberdade e justiça que beneficia toda a sociedade.
Judith Butler, uma das principais referências dos estudos de gênero, não entendeu por que grupos pediram sua expulsão do Brasil quando esteve no país em 2017. Seu nome era associado ao demônio, à destruição da família e à pedofilia, mentiras que motivaram ameaças de agressão em São Paulo. “Eu me perguntava o que isso tem a ver com gênero”, diz em entrevista por videochamada à Folha.
Seu interesse em entender o que organizava esses ataques desembocou em “Quem Tem Medo do Gênero?”, seu primeiro livro não acadêmico. Butler, que se consagrou com a ideia de gênero como performance há mais de três décadas, agora tenta descortinar o discurso conservador que vê seu trabalho como uma ameaça.
A pesquisadora define a ideia de gênero por trás desses ataques como um fantasma ancorado em teorias conspiratórias que difundem que um modo de vida corre perigo.
“Quando esses líderes produzem medo sobre gênero, pessoas transexuais, imigrantes, estudos raciais, eles procuram instalar novamente uma ideia sentimental de hierarquia, exclusão e supremacia. Mas ninguém está tirando a identidade sexual de ninguém”, afirma. “Queremos que todos sejam livres para encontrar seu modo de vida.”
A filósofa defende, diante de ataques à democracia, que a esquerda crie um imaginário convincente para a população. “Temos que apelar às paixões da esquerda feminista, queer e progressista, não às da esquerda que pensa que feministas, queers e transexuais são somente identitários”, diz. “Somos parte de uma luta por justiça, liberdade e igualdade.”
Butler diz ainda que o presidente americano, Joe Biden, candidato à reeleição contra Donald Trump, se enfraqueceu ao apoiar Israel na guerra contra o Hamas. “[O apoio de Biden] tem sido chocante para jovens e pessoas de esquerda, incluindo os judeus. Acho que muitas pessoas o veem como cúmplice do genocídio.”
A pesquisa para “Quem Tem Medo do Gênero?” começou depois da sua vinda ao Brasil. O que desse episódio a levou ao livro? Sabia antes de ir ao Brasil que havia debates sobre gênero no país e que várias comunidades conservadoras, católicas e evangélicas, estavam preocupadas com gênero. Mas me chocou saber que meu nome estava associado a isso e que eu era considerada uma espécie de demônio, uma força maligna.
Também me surpreendi com o fato de as pessoas me acusarem, e quem trabalha com o conceito de gênero, de ser cúmplice de pedofilia ou de prejudicar crianças. Vi que elas achavam ter razão ao pedir que eu fosse agredida e expulsa do país. Isso era novo para mim. Eu me perguntava o que isso tem a ver com gênero.
Queria, então, entender quais eram as paixões envolvidas e como elas foram organizadas pela mídia de direita, pela igreja e por congressos internacionais para construir uma ideia de gênero como se fosse uma ideologia demoníaca.
Essa ideia de gênero é caracterizada no seu livro como um fantasma. Como esse caráter ilusório do que é gênero foi criado? Vejo muitos líderes autoritários, entre eles Jair Bolsonaro, Viktor Orbán e Giorgia Meloni, que foram eleitos democraticamente.
Quando as pessoas votam nessas figuras, geralmente são atraídas pela ideia de restaurar uma ordem anterior. Quando esses líderes produzem medo sobre gênero, pessoas transexuais, imigrantes, estudos raciais, eles procuram instalar novamente uma ideia sentimental de hierarquia, exclusão e supremacia.
Mas ninguém está tirando a identidade sexual de ninguém. Ninguém está dizendo que você não pode ser mãe ou pai ou que você não pode ser heterossexual. Ninguém está tentando doutrinar crianças. Queremos que todos sejam livres para encontrar seu modo de vida.
Precisamos tornar nossos ideais e nossa imaginação mais vívidos, porque a direita é capaz de incutir medos muito fortes. Precisamos imaginar com mais coragem e publicamente tudo o que queremos, para que a nossa visão se mostre mais convincente que a deles.
Por que o gênero, especificamente, se tornou uma peça central para líderes autoritários? Tenho duas respostas para isso. A primeira é que o gênero aborda questões muito íntimas. Sexo, identidade sexual, orientação sexual são fundamentais para várias pessoas. Sentir que isso pode mudar ou que outros não estão vivendo dessa mesma maneira pode parecer desestabilizador.
Se isso está na base da sua ideia de casamento, de família, parece que tudo —a doutrina da igreja, a família, sua sexualidade— está sendo posto em questão. Porém, na verdade, tudo o que está sendo dito é: existem outras formas de pensar. Até mesmo dentro da igreja.
A segunda resposta é que o gênero é hoje usado para desviar a atenção de outros medos que as pessoas sentem. Em vez de nomear essas fontes de destruição, há um desvio, uma projeção.
Seu livro mostra que esses grupos também atacam estudos raciais. Como esses campos, gênero e raça, se cruzam? É uma ideia de nação que está em jogo. Quando Orbán se opõe à miscigenação, ele não quer que os húngaros brancos se misturem com imigrantes do norte da África ou do Oriente Médio. Ele quer manter a suposta pureza da nação, ou seja, a presunção da supremacia branca. Juntamente com Vladimir Putin, ele entende que a ideia de família apoia a segurança e a identidade nacionais.
Quando pensamos no assassinato cruel de Marielle Franco, podemos ver como raça, gênero, sexualidade e socialismo se unem. Ao matá-la, eles estão tentando dizer que o Brasil não será representado por alguém assim. Quem representa a luta pela justiça racial, pelos direitos das pessoas lésbicas e gays, pelas aspirações feministas faz parte de uma esquerda que será erradicada.
Parte da população teve contato com gênero nesse sentido negativo, não do jeito propositivo e libertador explicado no seu livro. Isso é resultado de uma falha política da esquerda e de movimentos progressistas? O problema é que a direita não está só descrevendo o gênero de uma forma falsa ou negativa. Ao apelar para um medo profundo, ela indica que há algo destruindo nosso modo de vida —e isso pode se chamar gênero, mas também raça, migração, socialismo.
A direita conseguiu, com sucesso, apelar a temores que as pessoas estão vivendo e fazer uma promessa de que vai aliviá-los se elas se subscreverem a certas agendas autoritárias.
Temos que apelar às paixões da esquerda —da esquerda feminista, queer e progressista, não a da esquerda que pensa que feministas, queers e transexuais são somente identitários. Não. Somos parte de uma luta por justiça, liberdade e igualdade. Não nos preocupamos somente com nossas identidades, estamos lutando por um mundo melhor.
Muitas pessoas temem a liberdade dos outros. Como você convence essas pessoas? Não é apenas apontando os motivos. Precisamos apelar ao desejo de viver em um mundo melhor. Sabemos que a esquerda sempre vai votar contra o autoritarismo. Mas e quem está no meio? Como fazê-las mudar de ideia? Estou interessada nisso.
Críticos do movimento “woke” defendem que a esquerda deveria estar lutando por ideais universais e que focar identidade, raça e gênero afasta quem não se vê nessas ideias. Qual sua resposta a isso? A esquerda deveria estar pensando em outras questões? A identidade é importante, mas críticos dessa esquerda patriarcal tendem a descartar uma ampla gama de questões como sendo identitárias. O movimento Black Lives Matter não é apenas sobre identidade, mas também sobre justiça.
Não aceito o capitalismo como uma opressão primária e raça, gênero ou desastre ecológico como secundários. Temos que conectar todas essas alianças contra a violência estatal e a ameaça à democracia. Sou socialista, mas não vou classificar as opressões.
Como apresentar o que são os estudos de gênero para um público amplo? Se olharmos para quem é pobre, analfabeto, desabrigado ou não tem assistência médica, por exemplo, e fizermos uma análise de gênero sobre isso, estamos tentando descobrir quantas dessas pessoas são mulheres ou não têm conformidade de gênero, o que inclui pessoas transexuais e não binárias.
É uma lente que permite pensar diferenças de poder. Geralmente, e de forma importante, está ligada à análise racial e de classe. Precisamos de um conjunto complexo de lentes trabalhando juntas para entendermos a sociedade. O gênero é uma delas.
Ao mesmo tempo, falamos de gênero como parte da identidade de cada um: como você se identifica? Qual é o seu gênero? Fazemos a distinção entre o sexo que lhe foi atribuído e como você dá sentido a esse sexo, se ele é confortável para você e como você se nomeia. Isso é um ato de liberdade.
Uma ideia central do livro é que contestar a direita autoritária é importante, mas não suficiente para derrotar o “fantasma de gênero”. Trump, que usa esse tipo de discurso, disputa de novo a Presidência. Como vê esse cenário? O que deve ser feito? Infelizmente, acho que Joe Biden se enfraqueceu ao continuar as políticas de Trump na fronteira sul do país e impedir que as pessoas possam solicitar legalmente entrada nos Estados Unidos, detendo-as na fronteira em condições desumanas.
Acredito que seu apoio incondicional a Israel até muito recentemente também tem sido chocante para jovens e pessoas de esquerda, incluindo os judeus de esquerda. Acho que muitas pessoas agora o veem como cúmplice do genocídio.
Também acho que Trump tem uma capacidade de emocionar as pessoas. Às vezes ele usa gênero, às vezes a questão transexual, às vezes o discurso anti-imigrante, cada vez mais cheio de ódio e violência. Isso entusiasma as pessoas pelos motivos errados.
Precisamos comunicar a Biden que ele precisa se mover para a esquerda vencer. Ele nos considera um voto dado, mas vimos nas primárias do estado de Michigan que a população árabe-americana estava decidida a não votar nele.
O discurso antigênero mobiliza medos —de desigualdades, guerras, crise climática—, e essas crises não estão perto de serem superadas. O que os estudos de gênero podem oferecer a quem quer respostas nesse cenário? É interessante ver como o gênero é organizado em diferentes países e que, como termo, ele não funciona em certos idiomas. Existem outras maneiras de descrever relacionamentos, diferentes formas de organizar o parentesco, a família, de viver um corpo ou mesmo de se entender na sociedade.
Por que não pensamos mais sobre a imposição colonial da família nuclear heterossexual em várias partes do hemisfério Sul, onde outros tipos de arranjos de parentesco eram possíveis antes?
Talvez possamos aproveitar mais as complicações linguísticas em torno do gênero. Talvez possamos tornar a antropologia mais popular. Acho que muitos de nós na academia precisamos começar a pensar com públicos mais amplos.
Judith Butler, 68
Professora titular da Universidade da Califórnia em Berkeley, é uma das pesquisadoras mais influentes no campo de estudos de gênero e sexualidade e teve seus livros traduzidos para mais de 25 línguas. Autora, entre outras obras, de “Caminhos Divergentes: Judaicidade e Crítica do Sionismo”, “Desfazendo Gênero”, “Problemas de Gênero: Feminismo e Subversão da Identidade” e “Quem Tem Medo do Gênero?”.