Christena Cleveland passou grande parte de sua infância em uma igreja evangélica cercada por imagens tradicionais de um Jesus com pele de porcelana e cabelos loiros.
Mas um dia ela se deparou com uma representação de Cristo tão surpreendente que ela engasgou.
Era uma pintura de um Jesus ressuscitado cercado por seus discípulos admirados, incluindo “Tomé Duvidoso” tocando a ferida no torso de Cristo.
A pintura parecia uma relíquia antiga descoberta em algum mosteiro deserto esquecida há muito tempo na Terra Santa, um afresco de estilo bizantino repleto de figuras de contornos nítidos, repletos de cores de azul e laranja profundos.
Mas foi outra cor na imagem que chamou sua atenção. Jesus foi retratado como um homem de cor – algo entre pardo e negro – e seus discípulos também.
Cleveland, que se tornaria teóloga e psicóloga social, percebeu que sempre imaginou um Jesus de aparência nórdica, que se parecia com Thor. Agora, ela percebia que ele se parecia mais com ela, uma mulher negra.
Para Cleveland, mudar a cor de Jesus mudou a forma como ela via o significado da Páscoa.
“Quando vejo a história da Páscoa, vejo Jesus sendo vítima de uma violência sancionada pelo Estado. Vejo Jesus cercado por pessoas negras e pardas que gostariam de poder fazer algo, mas não tinham poder no momento”, diz Cleveland, autora de “God Is a Black Woman” (“Deus é uma mulher negra”, na tradução livre).
“E vejo pessoas sendo vítimas de um sistema que não consegue ver toda a sua humanidade e assume o pior delas. E ainda assim há esperança no final”, diz ela.
“O universo se inclina na direção da Justiça, mesmo que o arco seja longo”, completou.
Enquanto os cristãos de todo o mundo celebram a ressurreição de Jesus, a história de Cleveland aponta para uma verdade incômoda: a verdadeira face do Jesus histórico não se parece em nada com aquela que muitos ainda veem nos vitrais das suas igrejas, nos filmes de Hollywood ou na imagem que muitos carregam em suas mentes.
Muitos estudiosos e arqueólogos concordam agora que Jesus era provavelmente um homem de pele e olhos escuros – mais parecido com um “judeu do Oriente Médio” ou com um homem árabe.
Um comentarista disse certa vez que se Jesus estivesse pegando um voo hoje “ele poderia ser perfilado para triagem de segurança adicional” pela TSA – a agência americana para segurança dos transportes.
Alguns podem responder com um grande: E daí? O debate sobre a cor de Jesus é um dos argumentos mais antigos na religião.
Como um homem que foi criado em uma igreja negra com um retrato gigante de um Jesus branco pendurado atrás do púlpito, me lembro de muitas discussões acaloradas em barbearias e churrascos onde teólogos de poltrona insistiam que Jesus era negro, citando escrituras como Apocalipse 1:14-14 (“A bíblia diz que ele tinha cabelos ‘brancos como lã’ e pés como ‘bronze polido’, então não me diga que Jesus não tinha cabelo afro!”).
Quem pode esquecer quando a ex-âncora da Fox News, Megyn Kelly, declarou em 2013 que Jesus, tal como o Papai Noel, “também era um homem branco” e “isso é um fato verificável”, uma observação que ela disse mais tarde ter sido feita em tom de brincadeira.
Mas a questão sobre a cor da pele de Jesus é séria na Páscoa, por duas razões.
Primeiro, embora o clássico Jesus nórdico continue a ser uma imagem popular hoje em algumas igrejas, um movimento para substituir o Jesus branco há muito se enraizou nos EUA.
Em muitos círculos cristãos – igrejas progressistas, igrejas negras moldadas pela “teologia da libertação” e entre estudiosos da Bíblia – exibições conspícuas do Jesus branco são consideradas ultrapassadas e, para alguns, ofensivas.
Em um país multicultural em rápida diversificação, mais cristãos querem ver um Jesus que se pareça com eles.
Mas em algumas partes do país, o Jesus branco nunca foi embora. A propagação do nacionalismo cristão branco inundou os feeds das redes sociais com imagens do tradicional Jesus branco, às vezes adornado com um boné vermelho escrito MAGA (Make America Great Again), o lema de Donald Trump.
O ex-presidente Donald Trump está vendendo o livro “Deus abençoe a Bíblia dos EUA” com passagens da Constituição e da “Bill of Rights” – uma ligação do patriotismo com o cristianismo que reforça uma imagem branca de Jesus que é central para o nacionalismo cristão.
Em segundo lugar, há um novo debate sobre a identidade do histórico de Jesus.
Alguns críticos da guerra Israel-Hamas estão declarando que Jesus era um “judeu palestino”, uma afirmação que pelo menos um estudioso da Bíblia diz ser falsa e que retoma um padrão histórico feio de “usar Jesus contra os judeus mais uma vez”.
Nem todo mundo quer fazer parte desse debate. Alguns cristãos reviram os olhos sempre que se deparam com uma pergunta sobre a aparência de Jesus.
Dizem que a história da Páscoa não tem nada a ver com a cor e a mensagem de Jesus. Eles citam escrituras como Gálatas 3:28, 29: “Não há judeu nem gentio, nem escravo nem livre, nem há homem e mulher, pois todos vocês são um em Cristo Jesus”.
Há também aqueles que são religiosamente neutros e se perguntam por que as pessoas têm que incluir a raça em tudo.
Como disse um comentarista exasperado:
“Estou tão cansado de ver as pessoas questionando qual era a cor de Jesus ou qual era a cor das doze tribos de Israel ou se Deus é preto ou branco. Para mim, pessoalmente NÃO ME IMPORTO com a cor de qualquer um deles. Não há nenhum versículo na bíblia que eu conheça que faça da cor da pele das pessoas um ‘problema’”.
O que falta em muitos desses debates sobre a cor da pele de Jesus é uma perspectiva mais matizada de pessoas ponderadas de ambos os lados. Aqui está o que eles dizem.
Por que alguns dizem que a cor de Jesus não importa
Warner Sallman pode ser o que o New York Times chamou de “o artista mais conhecido do século 20”, mas não é considerado um dos mestres em seu ofício.
Seu status reside em uma pintura notável, a “Cabeça de Cristo”. Foi reproduzida cerca de 500 milhões de vezes em retratos que adornaram salas de estar, escolas dominicais, selos e cartões de oração.
Sallman disse que a pintura foi divinamente inspirada. Ele era um ilustrador comercial que estava lutando para esboçar um retrato de Jesus para uma revista evangélica em uma noite de inverno de 1924.
Abatido, ele foi para a cama sem nenhum esboço, mas disse que foi acordado às 2 da manhã.
“De repente, me apareceu na mente uma imagem de Cristo, como se estivesse na minha prancheta”, disse ele.
O esboço a carvão de Sallman, que mais tarde ele adaptou para uma pintura a óleo de um Jesus de cabelos claros, olhos azuis e características nórdicas (Sallman era filho de imigrantes escandinavos) é um excelente exemplo do que os críticos chamam de Jesus branco.
O retrato foi lançado em meados do século 20 nos EUA, durante uma era de patriotismo fervoroso, recorde de frequência à igreja e histeria sobre a ameaça percebida representada pelo Partido Comunista.
Milhares de cópias do tamanho de uma carteira foram distribuídas aos soldados americanos durante a Segunda Guerra Mundial.
“Foi tão icônico que, para combater os ‘membros de carteirinha do Partido Comunista’, um ministro americano queria que cada cristão carregasse uma pequena impressão do Cristo de Sallman em suas carteiras”, escreveu Edward J. Blum, coautor de “The Color of Christ” (“A cor de Cristo”, na tradução livre).
Isso mudou desde então. Mas há quem diga que a cor de Jesus deveria permanecer a mesma, ou que isso não importa nem um pouco.
Christina L. Barr é uma ministra e autora que trabalhou na política do Partido Republicano. Ela diz que a mensagem da Páscoa é maior do que qualquer cor individual.
Todas as pessoas são pecadoras e Jesus morreu por todas elas, independentemente da cor da pele, diz ela.
“O paraíso não é exclusivo dos ricos ou dos de pele clara”, disse Barr à CNN. “Os braços de Deus estão estendidos a todos”.
Barr diz que algumas pessoas que dizem querer um Jesus negro ou pardo podem querer a sua melanina, mas na verdade não querem a sua mensagem.
Em uma coluna para o Black Tea News, site do qual ela é CEO, ela imaginou se Jesus regressasse à América contemporânea como um homem negro.
Haveria uma excitação inicial entre algumas pessoas até que Jesus começasse a pregar sobre o abandono da imoralidade sexual e da ganância, disse ela.
“No momento em que ele ofender os provedores de aborto, dizendo que Deus odeia mãos que derramam sangue inocente e repreender os americanos por nossa cobiça, ele será chamado de idiota preconceituoso e será totalmente cancelado”, escreveu ela.
Outros adotam uma abordagem mais filosófica da cor de Jesus.
“Se Jesus é retratado em obras de arte e ícones contemporâneos como branco, preto, marrom, hispânico ou do Oriente Médio, isso não deveria importar, porque a fisicalidade de Jesus era apenas um recipiente usado para carregar algo muito mais importante – o espírito do pai dele; Deus”, escreveu Antony Pinol em uma coluna intitulada “Why Jesus’ Skin Color Doesn’t Matter” (“Por que a cor da pele de Jesus não importa”, na tradução livre).
Quando contatado pela CNN, Pinol diz que simpatiza com aqueles que dizem que um Jesus mais escuro é mais identificável. Ele admite que existem barreiras à adoração de um Jesus branco que ele, um homem branco, pode não compreender.
Ainda assim, quando as pessoas se concentram muito nas características físicas de Jesus, torna-se mais difícil desenvolver uma relação mais profunda com Deus, diz ele. Para ele, a cor de Jesus não faz diferença.
“Isso não muda fundamentalmente o que ele representa e o tipo de mensagem que é central para o cristianismo e o que Jesus defendeu na sua vida e ações”, diz Pinol. “Ele poderia ser de qualquer cor e isso não mudaria sua mensagem”.
Por que outros dizem que isso importa
Alguns, no entanto, argumentam que a cor de Jesus é importante – por diversas razões.
Membros de vários grupos étnicos cristãos há muito tempo abandonaram a adoração de um Jesus branco.
Jesus foi retratado como coreano, negro com cabelo rastafari, como um indígena Māori com uma tatuagem no rosto inteiro e até mesmo como uma mulher negra.
Já não é incomum encontrar um Jesus preto ou marrom nos vitrais das igrejas.
Alguns ativistas negros lideraram um movimento para descartar o Jesus branco. Teólogos negros como o reverendo Albert Cleage retrataram Jesus como um homem de cor e um revolucionário.
E durante o acerto de contas racial de George Floyd em 2020, alguns ativistas pediram que as estátuas representando um Jesus branco fossem demolidas junto com os monumentos confederados.
Alguns teólogos negros que dizem que Jesus era negro não estão sendo literais: eles estão fazendo uma declaração mais ampla contra a forma como Jesus tem sido tradicionalmente retratado – como um homem branco no topo da hierarquia social.
O reverendo Dante Stewart refletiu esse pensamento em um ensaio intitulado “Como aprendi que Jesus é negro”.
“Eu vi porque eles insistiam em dizer que Jesus é negro”, disse Stewart, autor de “Shoutin’ in the Fire: An American Epistle” (“Gritando no fogo: uma epístola americana”, na tradução livre), referindo-se a teólogos negros como James Cone e a autora Toni Morrison.
“Eles não estavam falando sobre a cor de sua pele durante seu ministério terreno, embora definitivamente não fosse branco”, diz Stewart.
“Eles estavam falando sobre sua experiência, sobre como Jesus sabe o que significa viver em um território ocupado, sabe o que significa pertencer a um povo oprimido”.
Alguns também dizem que a cor de Jesus é importante por causa da história. Blum diz que a imagem de um Jesus branco tem sido usada para justificar a escravidão, o linchamento, as leis contra o casamento interracial e a hostilidade para com os imigrantes considerados não suficientemente brancos.
Quando o Congresso aprovou uma lei no início do século 20 para restringir a imigração da Ásia, do sul da Europa e do leste europeu, os políticos brancos evocaram o Jesus branco, diz ele.
“Um dos argumentos foi: ‘Bem, Jesus era branco’”, diz Blum. “Portanto, o tema era: queremos que a América seja profundamente cristã ou pelo menos baseada em Jesus, por isso deveríamos permitir apenas pessoas brancas neste país”.
O movimento MAGA usa a imagem de um Jesus branco para transformar batalhas políticas em armas, diz ele, apontando para cartazes na insurreição de 6 de janeiro exibindo um Jesus branco, às vezes usando um boné vermelho escrito MAGA.
Para Blum, alguns conservadores cristãos veem um Jesus MAGA branco como “um símbolo contra o movimento woke (despertar para as injustiças)”.
Outra razão pela qual a cor da pele de Jesus é importante é porque uma pessoa não consegue realmente entendê-lo ou à sua mensagem sem levar em conta a cor da sua pele e o seu estatuto socioeconômico, diz Cleveland, a autora e acadêmica.
Cleveland ecoa os sentimentos de alguns estudiosos que dizem que Jesus era uma minoria pobre e oprimida – um homem que um teólogo negro descreveu como um “líder não-branco de um povo não-branco que luta pela libertação nacional” de Roma.
Em uma coluna para o Christianity Today, Cleveland escreveu: “Como uma minoria étnica, Jesus não se preocupava apenas com as pessoas que eram vítimas da violência sancionada por Roma, ele foi vítima da violência sancionada por Roma. Jesus não se preocupava apenas com os refugiados, Jesus era um refugiado. Jesus não se preocupava apenas com os pobres, ele era pobre”.
Cleveland disse à CNN que as pessoas que dizem que a cor de Jesus não era importante ignoram a história.
“Isso limita a nossa capacidade de compreender o Jesus histórico, que não era um homem branco e não andou pelo mundo como tal. Ele estava sob ocupação romana – não muito diferente de alguém que vive em Gaza neste momento. Perdemos muito da história e dos ensinamentos históricos de Jesus porque eles vieram dessa perspectiva”.
A Bíblia guarda seus próprios mistérios sobre a aparência de Jesus
Cleveland descobriu, porém, quão arriscado pode ser desafiar a imagem do Jesus branco. Ela diz que depois de escrever sua coluna, recebeu tantas ameaças de morte que teve que mudar o local das aulas da faculdade que ministrava por segurança.
Ela diz que a experiência lhe ensinou o quanto o nacionalismo cristão branco e o Jesus branco se fundiram. “Por que seria realmente importante para você que Jesus não fosse branco – a menos que você precise que Jesus seja branco?”, ela diz.
O debate sobre a cor de Jesus pode parecer uma intrusão na história da Páscoa, mas de certa forma é uma extensão dela. Um dos elementos curiosos do Novo Testamento é que mesmo os discípulos de Jesus não conseguem descobrir como ele é nas histórias da Páscoa.
Um discípulo o confunde com um jardineiro, outros dois caminham ao lado dele em uma estrada sem reconhecê-lo, e outros não o reconhecem a princípio quando o encontram na praia.
É difícil imaginar o que os discípulos de Jesus realmente viram na manhã de Páscoa. O escritor Frederick Buechner certa vez tentou, descrevendo-os de forma memorável como encontrando “alguma versão nova e terrível” de Jesus, “desfigurado pelas mutilações da Cruz”, enquanto se levantava e se movia em direção a eles com “poder indescritível”.
Tudo o que eles viram e o que seus seguidores ainda veem é, em última análise, uma questão de fé. Não importa em que você acredite, Jesus ainda é sem dúvida o nome mais reconhecido e a figura mais evasiva da história humana.
Podemos tentar remodelá-lo à nossa imagem e dentro das nossas agendas, mas ele permanece – como fez naquela manhã de Páscoa pelos seus discípulos – resistente a qualquer categoria humana que possamos inventar, sempre fora do nosso alcance.
*Nota do Editor: John Blake é redator sênior da CNN e autor de “More Than I Imagined: What a Black Man Discovered About the White Mother He Never Knew” (“Mais do que eu imaginava: o que um homem negro descobriu sobre a mãe branca que ele nunca conheceu”, na tradução livre).
Este conteúdo foi criado originalmente em inglês.
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