Os dicionários nem sempre são ferramentas imparciais e isentas, como imaginado. A estudante do 3º ano do ensino médio Franciele de Souza Meira, de 17 anos, chegou a essa constatação a partir de uma pesquisa de iniciação científica em que analisou as definições das palavras “negro” e “preto” em 17 dicionários das mais variadas épocas. A maioria deles continha definições pejorativas.
A pesquisa lhe rendeu o prêmio de primeiro lugar na categoria Ciências Humanas da Feira Brasileira de Ciências e Engenharia (Febrace) 2024, após disputar com 43 projetos finalistas da feira de iniciação científica para jovens.
A ideia do estudo veio do interesse em questões sociais da aluna, que tem história e sociologia como suas matérias preferidas. “Gosto muito da parte de Ciências Sociais e sou uma pessoa que está na comunidade negra. Queria estudar o que tivesse entrelaçado comigo”, conta.
Então, ela pensou em analisar como o indivíduo negro é retratado historicamente. Chegou a considerar analisar crônicas ou literatura clássica brasileira, mas seu professor sugeriu o estudo de dicionários. “Por bastante tempo, o dicionário era visto como incontestável. Se você está fazendo uma tese, você vai recorrer ao dicionário para ver se aquela palavra que você está utilizando está correta naquele contexto. Se está ali (no dicionário), é isso”, diz.
Contudo, a pesquisa mostrou que mesmo os dicionários, considerados como definições isentas e sempre corretas, podem ser racistas.
“Temos que ter uma ideia de que as coisas que são colocadas nos dicionários representam uma ideia da sociedade, então eles mostrarão as definições que servem para aquela sociedade naquele tempo”, explica Franciele. “E naquela época, as pessoas negras em vistas como inferiores, como menos humanos.”
Para chegar a essas conclusões, a estudante classificou os dicionários cujas definições das palavras “negro” e “preto” fossem objetivas, e aqueles em que tinham referências pejorativas. Algumas das definições se referiam à pessoa negra ou preta como: “indivíduo sem alma”, “indivíduo comercializável” ou as colocavam como sinônimo de escravo.
Há ainda aqueles que fazem associação ao trabalho árduo, a objetos, a costumes ou ações ruins ou ao período escravocrata.
A hipótese de Franciele de que os dicionários tinham viés foi comprovada, mas até mesmo a aluna se surpreendeu ao perceber que isso não se restringia àqueles publicados em períodos antigos. Muitos dicionários atuais continuam carregando definições racistas.
“Não esperava é que durante todo o século 20 isso fosse mostrado e que continuasse esse discurso no século 21. Em 2011, ainda foi colocada essa relação entre indivíduos negros e a escravidão. A mulher negra era colocada como mulher escrava, mulher em cativeiro”, conta a estudante.
Ela explica ainda que as definições faziam referências históricas ou colocavam que poderia haver significado figurado ou pejorativo.
Para Franciele, a maior aprendizagem foi ser mais crítica com os discursos. “Aprendi uma nova metodologia de como ver discurso.”
Para o professor José Vicente, reitor da Universidade Zumbi dos Palmares, o exemplo dado por Franciele em sua pesquisa pode servir como uma ferramenta de consciência social de como o discurso já traz implicitamente juízos de valores que traduzem “uma percepção totalmente inadequada, indevida, injustificada e injusta sobre parte da população brasileira”.
“Assim, os jovens, além de terem elementos para fazer essa análise, poderão também estimular que os adultos se debrucem sobre essa questão e ajudem a fazer essa transformação para que as pessoas não sejam tão agredidas e hostilizadas por um viés de julgamento que está embebido em um discurso de preconceito e discriminação racial”, afirma.